terça-feira, 12 de março de 2013
50 Anos de Filmes - A Marca do Vampiro / Mark of the Vampire
A Marca do Vampiro / Mark of the Vampire
De: Tod Browning, EUA, 1935
Nota:
Anotação em 2011: Este A Marca do Vampiro, de 1935, o antepenúltimo dos mais de 60 filmes dirigidos por Tod Browning, “o Edgard Alan Poe do cinema”, é muito, muito estranho. E tem uma história de vida, se é que podemos chamar assim, complicada, insólita, fascinante.
Um filme estranho: tem absolutamente tudo dos filmes de terror, de vampiros, que Hollywood produzia às pencas, nos anos 1930 – mas é sobretudo uma trama policial, de investigação de um crime, e tem uma imensa, inesperada, absoluta reviravolta no final.
Um filme que teve, ele mesmo, uma história complicada, insólita: embora o diretor Tod Browning fosse um veterano, e respeitadíssimo, teve seu filme truncado pelo estúdio, a MGM: A Marca do Vampiro tinha originalmente 80 minutos, mas o estúdio, à revelia do diretor, cortou fora 20 minutos, um quarto do original, e exibiu-o com apenas uma hora de duração.
Não há obra que possa ter decepado um quarto dela, sem a aquiescência de seu criador, que possa permanecer inteligível. A Marca do Vampiro que se pode ver hoje – e que o TCM trouxe para sua programação – é um filme, a rigor, ininteligível. Muita coisa nele simplesmente não faz sentido – e a culpa, claro, não é de Tod Browning. É da Metro.
Uma mendiga em andrajos, ruídos de pássaros soturnos, medo
A narrativa começa numa aldeia que parece parada num passado bem distante do ano da produção do filme, 1935. É noite, e em volta de uma fogueira um grupo de músicos toca seus instrumentos e canta uma canção triste. Falam uma língua desconhecida – a impressão que se tem é de que o filme quer nos dizer que aquilo é Europa Oriental. O Conde Drácula, o espectador de 1935 sabia bem, era da longínqua Transilvânia, na Romênia, aquele lugar muito mais distante de tudo o que os turistas americanos em visita à Europa haviam conhecido.
Vemos uma mendiga em andrajos, velhinha, corpo arqueado, em um cemitério, numa noite de neblina – sombras e neblina, shadows and fog. Ela procura alguma coisa de valor, talvez algo que possa ser comido, quando um pedaço de seu xale se enrosca em algo que parece os dedos de um esqueleto. Pode ser um ancinho, mas a aparência é de dedos de um esqueleto. Ouvimos ruídos de animais, pássaros soturnos – ruídos altos, fortes. Close-up de uma coruja. A coruja faz um vôo rasante sobre a mendiga, ela foge, seu xale enroscado no que parecem ser os dedos do esqueleto se rasga.
Corta, e estamos em uma estalagem. OK, um hotel, uma pousada, uma hospedaria – mas a rigor uma estalagem, como a dos filmes que nos anos 1930 mostravam um passado distante. Um casal de turistas está sendo advertido pelo estalajadeiro (ah, que maravilha poder usar esta palavra fantástica, estalajadeiro) de que não devem se aventurar pelas estradas à noite. Não, melhor que eles fiquem ali, entre quatro paredes, protegidos pelos espinhos de morcego colocados junto das portas. As pessoas – admite o estalajadeiro – têm medo dos demônios do castelo.
Chega à estalagem uma carroça a toda velocidade, e dela desce, com muito pressa para entrar, um homenzinho miúdo, o doutor Doskil (Donald Meek). Serve-se de uma dose de aguardante – está apavorado, mas não quer deixar que o casal de turistas perceba seu pavor. A mulher do estalajadeiro o provoca: – “Bem, doutor, para quem não tem medo da noite, o senhor pôs os seus cavalos à prova.” O doutor tenta desconversar, mas a estalajadeira insiste, diz que ele tem medo de vampiros. Ele passa pelo casal de turistas, rumo a seu quarto, murmurando que acreditar em vampiros é bobagem, besteira.
O cinema mal aprendera a falar, e os técnicos de som de Browning já eram mestres
A fotografia é esplêndida, sensacional. Os créditos iniciais já haviam avisado que o diretor de fotografia é James Wong Howe, e este senhor, qualquer pessoa que conheça um pouquinho de história do cinema sabe, é gênio, é Midas – tudo em que ele encosta é brilho. Seis anos depois, ele seria o diretor de fotografia de Cidadão Kane. Estas primeiras sequências de A Marca do Vampiro impressionam: é tudo estranho, mas tudo transpira talento.
Vão aparecer muitos bichos sinistros, na narrativa – ratos, tatus, gambás. Ruídos igualmente sinistros, soturnos, acompanharão a ação. O cinema havia adquirido som apenas sete anos antes, mas os técnicos dirigidos por Tod Browning já sabiam fazer um trabalho espetacular na edição de som.
Um homem nobre, rico, Sir Karell Boroty (Holmes Herbert) vai aparecer morto. O doutor, aquele mesmo doutor Doskil, identificará dois buraquinhos no pescoço da vítima – e nenhum sangue em suas veias. O doutor não tem dúvida: o nobre foi vítima dos vampiros.
O inspetor de polícia que cuida do caso, Neumann (Lionel Atwill), é um cético. Não acredita nessas velhas lendas, superstições de gente ignorante, a respeito de vampiros. Estamos em 1935, tempos modernos, essas velhas lendas não têm mais lugar.
Mas aí o espectador vê vampiros. Está lá um vampiro, interpretado por Bela Lugosi, que havia feito um Conde Drácula em filme anterior dirigido pelo próprio Tom Browning, em 1931, Drácula. Junto do vampiro há uma vampira – é sua filha, Luna – e ela tem uma cara de vampira absolutamente impressionante. Os espectadores mais jovens notarão que ela parece de alguma forma familiar, e é verdade: a figura da vampira deste filme – interpretada por Carroll Borland – inspirou a criação da Mortícia da Família Addams.
A vampira Luna voa – uma seqüência impressionante
Lá pelas tantas, o espectador verá a vampira Luna voar, feito se fosse um morcego. É uma sequência bem curta, mas muito impressionante. Como bem sabem as pessoas que nasceram antes de 1990, em 1935 ainda não havia imagens geradas por computador.
E surge na história o professor Zelen, um super-especialista em vampiros, interpretado por Lionel Barrymore – que, estranhissimamente, parece, em 1935, muito mais velho do que em 1946, quando fez A Felicidade Não se Compra, de Frank Capra. O professor Zelen veio da capital, Praga, chamado pelo inspetor Neumann, que investiga a morte do homem nobre. A filha do morto, Irena (Elizabeth Allan), está para se casar – e o noivo é, para o inspetor Neumann, um possível suspeito. Acontece que a filha do morto é atacada pelos vampiros.
E aí, ao fim da narrativa, vem a grande reviravolta, o twist, o muda tudo.
Um diretor cuja vida daria um filme espetacular
O diretor Tod Browning é uma figura incrível, fascinante. É surpreendente que Hollywood ainda não tenha feito um filme sobre a vida dele. Afinal, já houve filme sobre os últimos anos de vida de James Whale, o inglês que dirigiu Frankenstein e A Noiva de Frankenstein (Deuses e Monstros, de 1998); já houve filme sobre como F.W. Murnau fez o seu Nosferatu (A Sombra do Vampiro, de 2000).
A vida de Tod Browning (1882-1962) certamente daria um filmaço. Nascido em uma família de confortável situação social, apaixonou-se aos 16 anos pela bailarina de um circo, saiu de casa e foi trabalhar no circo. Conheceu D.W. Griffith, o primeiro grande cineasta americano, e estreou como ator em Intolerância, de 1916, em que trabalhou também como assistente do diretor.
Estreou na direção já no ano seguinte, 1917, e rapidamente adquiriu a reputação de um dos maiores mestres do cinema fantástico e o epíteto de o Edgar Alan Poe do cinema. Dirigiu Lon Channey e Bela Lugosi, dois dos maiores atores de filmes de terror de todos os tempos. Em 1932, exagerou com Monstros/Freaks, um filme apavorante, assustador, passado no universo circense, com seres reais mas de aparência chocante – homens sem braços, sem pernas. O filme – que aliás o TCM também colocou em sua programação em 2011 – provocou muita polêmica, violentas críticas, e pôs Browning na lista negra de seu patrão, Louis B. Mayer, o chefão da Metro Goldwyn Mayer.
Mas Browning tinha um protetor dentro do estúdio, o talentoso e respeitadíssimo Irving Thalberg. Provavelmente foi Thalberg o responsável pela decisão do estúdio de permitir que Browning dirigisse este A Marca do Vampiro.
A refilmagem de uma obra que se perdeu completamente
Era a refilmagem de uma outra obra do próprio Browning, London After Midnight, de 1927. E aqui a história fica ainda mais fascinante. Não existe mais cópia de London After Midnight. É um dos filmes que se perderam completamente.
Um estudioso chamado Alfred Eaker, num site especializado sobre filmes sobre o fantástico, bizarros, surrealistas, com o nome bem apropriado de 366 Weird Movies, faz um longo histórico sobre os dois filmes, o de 1927 e sua refilmagem, este A Marca do Vampiro.
A Metro teria destruído, ela própria, cópias de muitos filmes
Que não existem mais cópias de London After Midnight, isso é um fato; os alfarrábios todos trazem essa informação. O que Alfred Eaker sustenta é que foi a própria MGM que destruiu as cópias existentes do filme. E mais ainda: segundo ele, era um hábito da MGM destruir cópias de filmes:
“A MGM, sob a direção de (Louis B.) Mayer, tinha o notório hábito de comprar rivais – as versões originais das refilmagens ralas do estúdio – e então fazia todas as tentativas de destruir e/ou suprimir o original superior. Por exemplo: eles compraram a versão inglesa de Gaslight de 1940 e tentaram destruir todas as cópias antes da estréia de sua versão inferior de 1944, com Charles Boyer. A MGM destruiu muitas, mas não todas as cópias, e compreensivelmente ganhou com isso um ressentimento profundo da indústria cinematográfica britânica.”
Prossegue o texto de Alfred Eaker:
“A MGM fez a mesma coisa com Dr. Jekyll and Mr. Hyde da Paramount, de 1931, um filme soberbo, que ganhou Oscar, para dar lugar à sua versão risivelmente ruim de 1941. Durante alguns anos, acreditou-se que todas as cópias do filme de 1931 haviam sido destruídas, e que portanto era um filme perdido, até que, muito depois, reapareceram cópias do original, para tristeza da MGM.”
(As duas versões de Gaslight, no Brasil À Meia Luz, a inglesa de 1940 e a americana de 1944, assim como as duas versões de O Médico e o Monstro, a de 1931 e a 1941, foram lançadas no Brasil em DVD, pela Warner Home Video – cada DVD contendo as duas versões de cada filme. Tenho eses preciosos DVDs. Vi todos os quatro filmes, mas, infelizmente, não escrevi sobre as duas versões de À Meia Luz/Gaslight. Precisaria revê-las para escrever sobre elas; me lembro ter gostado das duas versões; anotei só os dados básicos, e dei 3 estrelas em 4. Fiz uma anotação – muito antes de pensar em ter este site – sobre as duas versões de O Médico e o Monstro, em que de fato digo que a primeira é muito superior à segunda, embora a segunda tenha a beleza fulgurante de Ingrid Bergman.)
Insinuações de incesto – e por pouco o filme não teve uma tal de Margarita Carmen Cansino
O livro The MGM Story passa bem longe de toda essa controvérsia levantada pelo pesquisador. O verbete sobre A Marca do Vampiro diz o seguinte: “’Se você for o herdeiro de uma tia rica e de coração fraco, leve-a para ver este filme’, disse um crítico sobre Mark of the Vampire. Elizabeth Allan e Lionel Barrymore eram a confusa heroína e o professor de demonologia (!) neste revival do ciclo de horror; veteranos na arte de fazer arrepiar como o diretor Tod Browning, o roteirista Guy Endore e o Draculator Bela Lugosi deram a ele presas para sugar as bilheterias.”
Diz o AllMovie, com sua visão atual, pós-2000:
“Os sugadores de sangue, pai e filha, interpretados por Lugosi e Carroll Borland, aparecem pouco tempo na tela, mas garantem os melhores sustos, e parecem ter sido a inspiração para o filme Plan 9 From Outer Space, de Ed Wood. O filme originalmente insinuava que o vampiro de Lugosi tinha um caso incestuoso com o personagem de Borland, que teria resultado num assassinato-suicídio, deixando a ambos não-mortos. Isso explicaria o misterioso ferimento de bala no lado da cabeça de Lugosi, visível em todo o filme. No entanto, a MGM estava preocupada após Freaks, de Browning, ter gerado grande controvérsia, e então foram feitos cortes para garantir que Mark of the Vampire fosse seguro para o consumo do público.”
E o AllMovie faz uma revelação surpreendente: o fotógrafo James Wong Howe chegou a fazer testes de uma então jovem desconhecida para o papel de Luna, a filha do vampiro. A jovem, uma tal Margarita Carmen Cansino, não foi escolhida para o papel, mas pouco depois faria algum sucesso no cinema com o nome de Rita Hayworth.
É. A história do filme A Marca do Vampiro daria um bom filme espetacular. É uma história fascinante, e mais compreensível que a trama mostrada no próprio filme adulterado, capado, decepado pelo estúdio – mas, mesmo assim, apesar disso, fascinante.
A Marca do Vampiro/Mark of the Vampire
De Tod Browning, EUA, 1935
Com Lionel Barrymore (Professor Zelen), Bela Lugosi (Conde Mora), Elizabeth Allan (Irena Borotyn), Lionel Atwill (Inspetor Neumann), Jean Hersholt (Barão Otto von Zinden), Carroll Borland (Luna Mora), Donald Meek (Dr. Doskil), Holmes Herbert (Sir Karell Boroty)
Roteiro Guy Endore
Baseado na história The Hypnotist, de Tod Browning
Fotografia James Wong Howe
Montagem Ben Lewis
Produção MGM.
P&B, 61 min
***50anosdefilmes.com.br/
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